
ILE-IFE, NIGÉRIA. Há 800 anos, Gengis Cã encomendou aos povos submetidos uma escrita para a sua língua, contratou letrados e difundiu idiomas espalhados pela Rota da Seda, facilitando a administração do maior império em terras contínuas que o mundo já viu, e não, como costumamos dizer, “semeando o terror”. Os mongóis nos ensinaram que governar, mais que impor a própria língua, é beneficiar-se da comunicação com os povos em contato: reunir para reinar.
Difundir e aprender um idioma é recurso para os mais diversos fins políticos, o que devia ser mais debatido nas aulas de língua estrangeira. Fala-se hoje em intercâmbio cultural, e as relações comerciais sempre são uma motivação legítima. O Mercosul promoveu o estudo de espanhol e português, proveito mútuo que ultrapassa o mero jogo de forças internacional (ainda que atribuições recíprocas de hermanos e macaquitos nos lembrem que não se trata de um mar de Rosas). Mas a cooperação não é a norma nas políticas de língua estrangeira, e a difusão das línguas européias modernas é semente e fruto da empresa neocolonial, ao lado do aprendizado da língua do dominado. Walter Rodney mostrou o papel da Aliança Francesa como braço lingüístico da dupla tarefa de explorar o trabalho africano e enfrentar a influência britânica, e a outra face da mesma moeda é ilustrada pelo sistema Berlitz, mais conhecido pelos livrinhos de viagem e o método de imersão. Graças à ligação de Charles Berlitz com o serviço de inteligência do exército norte-americano, o sistema foi usado por agentes disfarçados, sabotadores e outras figuras simpáticas na aquisição “sem sotaque” de línguas do sudeste asiático.
Felizmente, a recepção das línguas estrangeiras pode tanto assumir um caráter pernicioso quanto libertário para um povo. O dado promissor do português é que essa língua tem hoje, como principal doador, uma ex-colônia, teoricamente menos adoecida de imperialismo (diferente do inglês dos EUA e a cultura expansionista de que é herdeiro): nós. Claro, o “brasileiro” como língua estrangeira não será mais responsável só pelo atestado de bons antecedentes. Em países da África não-lusófona em que se aprende o português, não parece haver muita consciência, da parte de alunos e professores, de que se trata de uma língua com realidades históricas (de dominação externa) e atuais (de déficit social) semelhantes às do aprendiz. De fato, os mesmos problemas, da baixa auto-estima do aluno, desvalorização da língua materna e o irritante mito do “falante nativo”, à idéia de que os alunos estão ali para “subir na vida” (e não partilhar outros modos de vida), deixam o português brasileiro, ao menos na África, em situação idêntica à dos colegas europeus. O próprio Brasil é um belo reprodutor de mitos: chamamos de língua estrangeira a européia, e “dialeto” a língua africana! É duplamente vergonhoso se nós, passando o que temos passado, repetirmos o pecado de nossos senhores.
Publicado em O Tempo, 10/07/2009, com o título “Nossa língua”
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