segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

40 anos de Abbey Road


Lado um - Rua do Abade, 69

Vem logo atravessar a rua sobre mim. Do outro lado, uma década de admiráveis conquistas humanas (a lua ficou deste lado), como a apoteose brasileira do futebol, o milagre, a crise do petróleo, as mãos de Victor Jara, a revolução dos cravos, the gates of delirium e the dark side of the moon.

Alguma coisa me diz que Abbey Road, gravado em estúdio de mesmo nome, logradouro de mesmo nome, locação idem da foto de capa, foi a última coisa boa que aconteceu do lado de cá da rua. O último ano dos anos 60 é uma desviravolta no pensamento ocidental: as cabeças, que pareciam mudadas, foram logo cortadas. Após 68 o ocidente devia parar pra pensar e, no entanto, parou de pensar, recolheu-se. Se o ano de Zuenir Ventura não terminou, 1969, no livro de Rob Kirkpatrick, é “o ano em que tudo mudou”. Mudou? De fato, american dreams como o divórcio sem culpa, Woodstock e o transplante de coração anunciam delícias da nova era. Mas a continuidade era soberana. A reportagem da Time sobre o massacre de My Lai, afora fazer John devolver sua medalha da ordem britânica, não é nenhuma ruptura: é o antigo mito da liberdade ocidental de expressão, mordaça duas vezes emudecedora, pois acostuma os olhos e entope os ouvidos. A mudança vem de outra parte. Do alto de um telhado londrino, eles fazem o último concerto, e não se ouve a histeria dos fãs. A música límpida incomoda, e a polícia, tradicional cordão de isolamento do quarteto, agora está ali para romper o show. E rompe.

O martelo prateado de Maxwell e suas quatro equações fazem de cada Beatle um teorema: 1) a ausência experimental de cargas magnéticas (o apagado Ringo); 2) cargas elétricas produzindo campos elétricos (o ligado John); 3) correntes elétricas produzindo campos magnéticos (o atrativo Paul); 4) e variações de campo magnético produzindo campos elétricos (o transcultural George). Esse é o ambiente relacional negativamente carregado dos Beatles em 1969, ano de brigas intermináveis e a tumultuosa gravação de Let it be (porém, segundo Samuel Rosa e eu, “o disco mais negão dos Beatles”). Por isso, em cada canção bem cuidada, na beleza de cada musical detalhe, Abbey Road é um tributo a nós todos, o carinhoso legado do quarteto que, num último esforço conjunto, presenteia o mundo com a promessa de redenção.

Oh, querida! Do outro lado acaba o sonho e ainda havia tanto por fazer! Os Beatles fizeram: sua pequena mas saborosa parte. Em George doía a empresa Maçã, transformada num inverno burocrático, e em vez de lamentar, compõe uma flor de canção nos jardins de Eric Clapton: há, sobretudo, o sol brilhando lá fora. Ringo trilha a mesma linha e canta uma ode ao amor feito com calma e sem medo num paraíso oceânico. Ouvir nessa canção as guitarras de George e John, o backing vocal de Paul e George, a levada ao mesmo tempo suave e contagiante dos quatro, contrasta a generosidade musical dos Beatles com a hipocrisia ao redor. Nesse disco-presente pro mundo, Lennon & Mccartney colocam umas tantas vaidades de lado (John viciado no próprio gênio, Paul incurável de beatlemania) e compõem uma ópera-rock, semente do arborescente rock progressivo da década vindoura. Abre com uma crítica à ganância e termina... bem, com um fim. Mas é um fim exclamativo, questionador, germinativo: “O amor que você recebe é igual ao amor que você faz”.

O jardim do polvo se abre a tentáculos de possibilidades. Planta-se aí o que se quer, e hay que ser responsável pelo resultado. É na boa semeadura, a gravação bem cuidada de composições geniais, que Abbey Road está na contra-mão das intenções jardineiras de outros personagens de 69. E são nas flores já maduras, a obra (e as tradições musicais que brotaram da obra), esse manifesto visceral à beleza, que Abbey Road está na contra-mão das consequências jardineiras de boa parte do resto do ocidente.

Eu quero você pensando a data de 20 de agosto de 40 anos atrás (ela é tão pesada!). Nela reunem-se os Beatles pela última vez em estúdio, para lançar, em setembro (outubro nos EUA, sempre atrasados no tempo), o disco mais importante da história do disco. Caetano Veloso dá essa honra a Sgt. Peppers, mas isso é só a tentativa caetana de não deixar o Tropicália, também sessentanovesco e contracultural, ser eclipsado por Abbey Road. Amordaçado por 1969, Caê faz as malas para Londres, e lá estaria em 20 de agosto, mas não na mesma rua. Na mesma data e estúdio estavam os Floyds, que nos mostrariam a banda escura da lua - tão pisoteada em 69 -, mas só na década seguinte.

Lado dois - Anos 70 e além

Aqui vem o sol da nova década, depois de um longo e solitário inverno. Não, o sonho não acabou. Agora a virada começa, pois não basta a cabeça nas nuvens pra sonhar. É quando o céu desaba sobre nossas cabeças que elas se abrem, por impacto, como a rachadura produtiva na testa de Zeus, cuspindo pro mundo a sábia Atena. Nas Minas Gerais, clubes de esquina buscam o ouro, querem ser ocidentais como os outros (ninguém vai saber, mesmo). Os Yesses cantam que logo a luz irá se insinuar, acalmando a infindável noite.

Porque o mundo é redondo, gira o eterno retorno do sonho, e ao atravessarmos a rua, há revolta do outro lado. Porque o céu é azul, nem por isso faz chorar ou resignar, como a fase de Picasso, mas ainda assim é um blues, forte de tristezas narradas, prenhe de revolução. Porque o vento é forte, ele balança certezas mesquinhas, as vontades de posse, e deixa firme (mas mais arejado) o desejo bem plantado de um mundo novo em folha.

Você nunca me dá seu dinheiro, mas agora a conversa é outra: todo aquele sentimento mágico amadurece suas crianças exploradas, e em breve você terá que se sentar à mesma mesa de negociação. Lá vem o Rei Sol, todo mundo está rindo... e o império contra-ataca. O malicioso Sr. Mostarda, gás queimando nossos pulmões, cegando as mentes caladas e... Pam! Um polietileno saco de supermercado, leve, transparente e barato é enfiado sobre nossas cabeças, asfixiando o mundo e... Atenção! Ela entrou pela janela do banheiro! Cochilos dourados do Imperador e a rebeldia retorna por onde menos se espera. Durma, meu bem, e não chore. Você ainda vai carregar esse peso por muito tempo, mas vai valer a pena, afinal: o que vai acabar é a velha ordem social. O fim.

Sua Majestade Abbey Road que me perdoe.

publicado no jornal O Cometa Itabirano, setembro de 2009

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