segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A farra do hebdomadário ilusionista


Use Veja para limpeza étnica pesada

Em João 20:24-25, são Tomé é apresentado ao Cristo revivo e duvida: “Se eu não vir o sinal dos pregos nas mãos dele ... não vou crer!”. Esse ato do apóstolo tipifica a chamada visão de mundo naturalista, nunca vista com bons olhos nos círculos da fé cristã mas cheia de adeptos em nossos tempos mais céticos. Tomé, no fim das contas, se redime, conquistando inclusive o epíteto de “o Crente” junto à cristandade. Uma nova versão do tradicional ver-pra-crer tem sido praticada com entusiasmo cada vez maior pela grande mídia e seus espectadores, e não é apresentada pelo Jack Palance. Nessa nova versão, o ato de ver (ou ler, ou ouvir, dependendo da mídia) exige a crença automática no visto ou no lido. A ironia é que, se o que reprovamos em são Tomé é a falta de fé, o pecado da nova versão é o excesso. Ou a falta de visão crítica, o que dá rigorosamente no mesmo.
           Mire-se no exemplo do nossa mais badalada revista semanal - hebdomadário, como se gostava de dizer no Pasquim - que atende pelo apropriado nome de Veja. A revista bateu todos os recordes de neo-sãotomeísmo em sua matéria especial “A farra da antropologia oportunista” (edição 2163, de 05/05/2010). Não é pedir demais ver com os próprios olhos um trecho logo no início da matéria que, pode crer, diz exatamente o seguinte:

Áreas de preservação ecológica, reservas indígenas e supostos antigos quilombos abarcam, hoje, 77,6% da extensão do Brasil. Se a conta incluir também os assentamentos de reforma agrária, as cidades, os portos, as estradas e outras obras de infraestrutura, o total alcança 90,6% do território nacional. Ou seja, as próximas gerações terão de se contentar em ocupar uma porção do tamanho de São Paulo e Minas Gerais.

O texto não deixa espaço para a dúvida. Apresenta como um fato bruto, legitimado em precisos percentuais, a assombrosa notícia de que índios, quilombolas e agricultores sem-terra (que pensávamos ser a porção marginalizada do Brasil), somados à cobertura de mata virgem cada vez mais reduzida (não me pergunte como “obras de infraestrutura” entra na conta), tomaram conta do país, numa revolução silenciosa de épicas proporções. 90,6%! Tudo aquilo que aprendemos e sabemos sobre o desaparecimento das nossas florestas, sobre a saga de negros fugidos pro mato, pra ser gente, longe das compulsões da cangalha, tudo o que sabemos da histórica desigualdade fundiária brasileira, fartura de uns, fome de tantos, e, o que é mais central para este artigo, tudo o que sabemos sobre 500 anos de massacres, subjugações e humilhações dos índios no Brasil, é pura ilusão. Ou ao menos são águas passadas. Agora, devemos crer que os verdadeiros brasileiros estão acuados, à beira de serem expulsos pela massa de deserdados e pela indiada ressurgida das cinzas. 


A matéria segue dando asas a uma imaginação tão fértil quanto perversa. Beckett e Ionesco eram, pelo menos, geniais. Nem de longe é o caso aqui. A desinformação descarada, aliada a um racismo de butiquim, depõe contra a inteligência não só do leitor mas dos bois-de-piranha recrutados pela Veja para assinar essa peça desteatral (o teatro, ao contrário do que diz um dos subtítulos a matéria - ver logo adiante -, não é atividade para mentirosos, muito menos para mentirosos burros). Numa redação (digamos) ousada, o texto desfila subtítulos que em minha terra seriam considerados maximamente preconceituosos, e em outras terras passíveis de pena máxima: “Os novos canibais”, “Macumbeiros de cocar”, “Teatrinho na praia” (índios fantasiando-se de índios!), “Made in Paraguai”, “Os carambolas” (os tais “supostos” quilombolas). Não há o que comentar. O visto fala por si.
Esses subtítulos, além de tudo o que são e não são em si mesmos, vêm acompanhados de fotos individualizando e ridicularizando seus alvos. E subtitulam desinfográficos, cujo teor deveria, até pros incautos, desmascarar o que está na cara. Volto a citar da fonte, que é mais divertido (mas só 3, pra não cansar):

Beneficiados: 47 famílias declarados boraris
Impacto: expulsa da área 250 famílias que não se declaram boraris e empresas que absorvem 800 pessoas.

Beneficiados: 50 famílias declaradas guaranis
Impacto: impediu a construção de um porto de 6 bilhões de reais

Beneficiados: 153 famílias quilombolas
Impacto: desapropria oito fazendas e uma olaria, causando um prejuízo de 2,5 milhões de reais a microempresários.

Entremos na dança de crer que as informações procedem, no jogo da ressignificação das palavras. “Beneficiados” vira vantagem espúria, como se se tratasse daquelas poucas vetustas famílias que, declaradas brasileiras ou não, engoliram boa parte da terra brasilis sob amparo oficial e cartorial. “Declarado” vira “mentido”, “falsificado”, como um uísque de má procedência. Só quem não se declara índio é, na falta da declaração, gente de bem. “Impacto” pega carona no campo semântico do desastre (como em “impacto ambiental”, o inverso do relatado!) e mostra o estrago (o “prejuízo”, sic) causado por índios e quilombolas à natureza da civilização. Pobres milhões, bilhões de reais. Pobres empresas, pobres portos e investimentos. Pode-se ouvir o clamor: removam as barreiras! Eliminem. Limpem.
A Veja se superou ao multiplicar neo-sãotomeísmos numa matéria só, cada um com endereço certo de consumo acrítico por parte de seus leitores (ou devíamos chamar credores?). Cada um é gravíssimo em si mesmo e dois vou só mencionar. Primeiro, a matéria joga no lixo um fundamento da prática jornalística, que é tratar fatos e pessoas reportadas como algo mais do que objetos de manipulação discursiva. Não creio em isenção total, nem em imparcialidade. Mas jornalismo tem um pé no mundo das factualidades - a fonte, como se diz -, mesmo quando assume uma causa, mesmo quando vira propaganda. Pergunte ao Goebbels. Em segundo lugar, a matéria é irresponsável em um de seus alvos, a tal “indústria da demarcação” que finge denunciar. Ao dizer que o processo demarcatório enche de dinheiro o bolso de antropólogos e índios, desrespeita covardemente toda uma classe profissional (os antropólogos, está claro) fazendo, ao mesmo tempo, a defesa velada dos interesses mais predatórios, que avançam sobre gentes e terras desde que somos Brasil (se minhas palavras não inspiram a crença, busque os dados do Incra no Google. Procure, por exemplo, “maiores latifundiários do Brasil”). Os antropólogos, e muitos outros grupos atingidos ou solidários aos atingidos, já se pronunciaram e protestaram, e deixo com eles, que são mais qualificados, a palavra sobre o assunto. Busque lá no Google, por favor.
Tudo isso é muito sério mas quero frisar uma terceira questão. Crer à primeira vista só é possível quando a mídia mostra o que queremos ver. Infelizmente, a Veja funciona muito bem para dar vasão (além de visão) aos sentimentos de uma parte da sociedade brasileira que é, basicamente, racista e reacionária. E índio é uma categoria especialmente suscetível de virar alvo desse “racismo de princípios”. A razão é que, por mais miseráveis e desarmados de suas culturas pelas frentes de civilização, por mais massacrados e humilhados, os índios sempre continuaram sendo índios. E isso nós não engolimos. Nos roemos de raiva com a insistência do índio em ser índio. Os demais povos que vieram dar no Brasil, como os muitos povos da África, da Europa portuguesa, e depois italiana, alemã, e até do Japão e do Oriente Médio (há algo mais brasileiro que um libanês?), todos, bem ou mal, se abrasileiraram, mesmo trazendo consigo suas culturas para engrossar o caldo comum. O índio não. Se já houve um ex-índio, é aquele que, filho de pai europeu e identificado com ele, guiou a mão do resto dos povos mata adentro para “fazer o Brasil”.
               Darcy Ribeiro (a quem costumo ler e costumo crer), costumava dizer que índio não vira não-índio. Dizia que aquele índio de algum modo sobrevivente ao rolo-compressor civilizatório é “índio específico”, dono da própria cultura, da própria língua, do próprio corpo, de si mesmo. Que para os demais, os ditos aculturados, não há assimilação, e que a dita integração não é uma meta a se atingir mas uma realidade compulsória a se viver, em muitos casos deprimente e até fatal. Que desarmado de sua cultura, de sua língua original, o índio integrado vira “índio genérico”, forçado a viver à margem de uma sociedade brasileira astronomicamente maior e envolvente. E que ainda assim permanece índio, chamado e se chamando de  índio.

              Ao ridicularizar a indiada, a matéria da Veja nos dá o meio de revidar, de lavar nosso racismo tipicamente brasileiro, esse que não aceita a não-amalgamação, que não aceita a impermeabilidade à fusão estampada na resoluta identidade de índio. Veja cumpre a tarefa de limpar em nós essa estrebaria de Áugias, essa impaciência odienta, invejosa, racista afinal, ao inventar uma figura de escárnio, mais fácil de rejeitar por que é ela que é suja, é ela que é errada, é ela que é falsa. Acredite quem quiser. 

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